A vida de Francisco (e a de todos nós) começou a ficar incerta a partir de março de 2020. Um vírus letal, que até então circulava em território chinês, chegou à Europa sem pedir licença. E não demorou muito para atravessar o Atlântico, atingir países mais pobres e arrasar famílias inteiras. Nossos projetos, viagens e sonhos tiveram que ficar para depois. O mundo parou diante de uma ameaça invisível.
Muitos se foram sem se poder despedir dos seus parentes. Todos os dias, infelizmente, renovamos esse luto. Para o cristão, o “desconhecido” que luta pela vida numa UCI de hospital é um irmão. É o homem ferido na estrada, diante do qual o bom samaritano que passa, como ensina a parábola, não pode ficar indiferente. Portanto, um “e daí?” diante do sofrimento alheio nunca fez parte do vocabulário evangélico.
É um ano para esquecer. Mas também para lembrar e agradecer por estarmos vivos. O Te Deum do dia 31, o hino utilizado na liturgia católica em eventos solenes de ação de graças, deverá ser entoado para celebrarmos também essa vitória.
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E agora, o que vem pela frente?
Num momento em que vários países do mundo anunciam seus planos de vacinação, inclusive o Vaticano, o papa surpreende o mundo ao confirmar que visitará o Iraque em março de 2021. À primeira vista, pode parecer que o pontífice tenha agido de maneira inconsequente. No entanto, é provável que, até lá, todos os cidadãos de seu pequeno Estado já estejam vacinados. O Vaticano, possivelmente, será o primeiro país do mundo a conseguir esse feito, já que conta com pouco mais de 800 habitantes.
Para além da discussão se foi prudente ou não o papa ter marcado essa viagem, uma coisa é certa: no ano da retomada, que será 2021, Francisco orientará todo o seu trabalho pastoral para as periferias. Se ele já faz isso ao longo de quase 8 anos de governo, fará ainda mais no ano que vem.
Não me surpreenderia se ele incluísse na lista de suas visitas apostólicas alguns países da América Latina e outros do Oriente Médio. Ir para onde ninguém quer ir ou jamais foi virou regra no pontificado atual. Para Francisco, é a expressão máxima do “ser pastor com cheiro de ovelhas”. E não existe pastor sem povo. Não existe Igreja que não se volte para os pobres.
É provável que o santo padre privilegie os países onde os problemas sociais foram mais acentuados pela pandemia. E nada melhor que iniciar por um dos países mais arrasados pelas guerras no século 21, como é o caso do Iraque. A terra de Abraão, o patriarca bíblico que os cristãos chamam de “pai de todos aqueles que creem no mesmo Deus”, será palco de uma nova fase que se inicia para Francisco.
O coronavírus fez com que o país mergulhasse (ainda mais) na crise humanitária da qual nunca saiu desde 2003, quando os Estados Unidos e seus aliados invadiram o território. Por lá, sobretudo agora, o deserto virou cemitério, como relataram algumas agências de notícias internacionais.
Ao longo de 2020, Francisco fez um apelo à comunidade internacional para que deixe de investir em armas e use esse dinheiro para socorrer os países mais pobres. Também pediu um cessar-fogo global “que permita a paz e a segurança indispensáveis para fornecer a assistência humanitária”. Ele pensa nos países que receberam várias sanções por parte das grandes potências e, por conta disso, não puderam receber suporte necessário para combater a doença.
Francisco pediu um pacto global de fraternidade na sua encíclica Fratelli Tutti, publicada em outubro deste ano. Através das suas próximas viagens e documentos, certamente vai reforçar esse desejo. Se “todos estão no mesmo barco”, como ele disse em várias ocasiões, quer mostrar que, somente juntos, poderemos chegar à terra firme.
Será um ano diferente para um papa que estava acostumado a seguir um programa muito específico. Ele assume a responsabilidade de preparar a Igreja para uma mudança de época. E isso ficou evidente tanto nos últimos textos que lançou quanto no último consistório que convocou. Os seus gestos, daqui para frente, serão uma resposta a essa missão que acabou sendo desenhada pela própria pandemia.
Francisco prepara-se para o fim e para o novo; coroa seu pontificado com o discurso da esperança, mas não deixa de denunciar as mazelas da sociedade. Sabe que o tempo urge e o próximo papa que virá terá muito trabalho.
Ele pensa na Igreja e no mundo do pós-pandemia. Quer que o cristianismo resplandeça como uma proposta que dá sentido à vida, não como uma religião dos perfeitos onde o ritualismo estéril transforma as comunidades católicas em “guetos dos perfeitos”. Se ao longo da história, quando a humanidade estava em ruínas, a Igreja assume as vestes de um grande hospital de campo, como pontua o papa Francisco, para ele é hora, então, de não negligenciar essa característica que lhe é própria.
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Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Texto in Domtotal