A tia Maria viu-me crescer e serviu-me muitos cafés quando por Freamunde dentro cumpria a missão de experimentar a vida e assim aprender a viver. E gostou sempre de mim, coisa rara nos dias que correm, por aceitar a minha provocação de a querer ouvir. Ela sabe, como sempre soube, que procuro janelas de onde possa gritar o amor à nossa terra, coisa que ela sabe fazer como ninguém.
Não a via desde a semana cultural da Sebastianas, recatada que está das maleitas que pululam, onde lhe vi lágrimas nos olhos, mas escondidas, quando ouviu o “Carvalhal” cantado pelo Rui Taipa. Eu sei quais as emoções escondidas atrás dos seus olhos: como era bom ter ali o Manel a ouvir uma cantiga tão linda.
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. Olha a tia Maria, por aqui, nesta festa tão grande, no meio dos políticos, o que anda aqui a fazer?
. Ouve lá, achas que é só pra ti, meu lambão, eu vim ver como se faz esta festa, estás a perceber?
. E está a gostar?
. Pra já tudo bem. Tratam-me bem como sempre, o contrário também não deixo; e pronto, estou aqui toda contente, até divertida com o que já estou a ver.
. Como se lembrou de vir, é a primeira vez que a vejo por cá.
. Pois é, no ano passado parece que aqui houve bronca, atão, sabes como é, cá estou eu para ver se o povo tem razão.
. É tudo má lingua, vá por mim!
. Os meus olhos vão ver, depois digo-te mas só se guardares segredo.
. Segredo, tia Maria?
. A gente depois de falar fecha a boca, não é? Aprende comigo, ouve, come e cala. O segredo é a alma do negócio.
. Mas o meu negócio é falar…
. Atão abre a boca e fala, mas vais ter tanto mau tempo meu querido; olha que já tens idade para ter juízo.
. Se calhar, mas olhe é feitio.
. Chama-lhe isso, olha, lembras-te das tardes no Café do Américo quando eras pequenino, lembras-te? E assistias às cartas batidas na mesa azul?
.Lembro, pois.
. E ouviste as bocas a falar no meio das suecadas e o que elas diziam? E achas que falavam do “trunfo é copas” para orientar o jogo?
. Sim, era assim ou não era?
. Atão vou dar-te uma notícia: Em Freamunde tínhamos tudo (agora nem por isso) e até tínhamos a PIDE. Ele ia ao “popular” puxava de um cigarro e punha-se a ouvir as tais bocas a falar, estás a perceber?
. Acho que estou a ver quem era.
. Ora bem, isso mesmo; então quando ele chegava, o jogador virado pra porta dizia: trunfo é copas! E pronto, a partir dali todas as conversas eram sobre a alegria do povo, as conquistas do ultramar, o trabalho que dignificava o homem (nunca percebi isto, nem na missa, olha bem!) O PIDE saía, voltava a roda da conversa, e o jogo corria.
. E isso é para me explicar que:
. A boca abre para falar e fecha para calar. É consoante a ocasião, estás a perceber?
. Ocasião, isso mesmo. E então, como estamos a falar, diga-me lá; veio por convite ou pagou bilhete…
. Comprei bilhete. Fui à Junta e pronto. Assim é melhor, percebes. Eles já me dão muito, até me metem nos passeios da Câmara à Malafaia quando está bom tempo. Gosto muito deles e por isso vim aqui para perceber a coisa. Depois lá me entendo com os meus botões.
. Está-me a falar de eleições, é isso?
. Lá estás tu cu teu veneno, rapaz.
. Ok, guarda a opinião para si, faz muito bem, e olhe ….
. Não tentes, não ta dou, ainda publicas isso na Rádio Freamunde e vou ter de receber mensagens no meu facebook do nosso presidente. Sabes, é uma pessoa muita atenta aos pormenores.
. Conheço mal, mas não gosta de estar com os políticos?
. É assim, não desgosto. O que mais gosto é de ir à feira, à do Cô e de Freamunde. Lá arranjo coisas boas e baratas, mas estar com políticos não desgosto, quer dizer, eles são simpáticos, dão beijinhos, resolvem tudo baratinho, só têm um defeito.
. Defeito? E vai dizer-me qual é ou vai fechar a boca?
. Isto posso dizer que eles não vão levar a mal: eles falam muito, tanto, tanto. Diz-me lá porque demoram tanto quando a gente quer é almoçar?
. Os nossos políticos falam porque têm de explicar às pessoas o que andam a fazer
. Achas? Olha que o meu Manel – que Deus tem – e era o político lá de casa, mas quem mandava era eu, falava curto e grosso; mas era um homem de Deus. Sabia sempre o que queria, arranjava dinheiro para pagar o que comprava, antes de prometer mostrava obra…e até quando queria experimentar as estrelas do céu só dizia, “oh Maria vira a báscula”!
. Não era homem de muitas palavras, mas gostava de estar com os amigos, ali debaixo da tília do Popular ao fim da tarde…
. Palavras para quê, bastava um olhar e a obra crescia com o calor do sol. Sabes, foi assim que se fez Freamunde, muita gente como eu e o meu Manel. Claro que agora é melhor, dá gosto ver os netos e bisnetos a correr o mundo e a levar o nome da nossa terra para todo o lado. Mas acho que os de agora precisam de se lembrar dos mais velhos.
. Como é que isso se explica?
. Crescemos sozinhos, sem ajuda de ninguém e sempre com a Câmara contra. Nunca precisamos deles, mas agora é tudo de joelhos, meu Deus que tristeza. (Não escrevas esta parte, ainda vou ter problemas, percebes?)
. Olhe vou deixá-la experimentar o capão e depois voltamos a falar, está bem?
. Meu querido, fico à tua espera.
O capão estava delicioso:
O capão estava delicioso: uma rapsódia de sabores a espicaçar a alma e a exigir concentração dos comensais na tarefa divina de o comer. Até que chegaram os discursos, na liturgia do poder, com falas do tempo comum, coisa normal que se cita de memória.
A vida tem destas coisas, precisa de encenação, de manifestação, mesmo de exercício do poder ou de explicar quem manda. Terminada a missa do capão, voltei a procurar a tia Maria. Afinal, aquilo que interessa:
. Então, compostinha?
. Arregalada, bem bom, valeu a pena vir aqui mesmo com tanto frio e chuva.
.Boa maneira de terminar o ano, com uma janta destas.
. Pois é, mas podiam falar menos, não achas?
. Eu gosto de os ouvir.
. Macaco, estás à espera de um falhanço, mafarrico!
Entretanto chega o neto da tia Maria com a pressa moderna da falta de tempo informando que a avó precisava de dormir. Ela sorriu, levantou-se e preparou o olhar para se despedir.
Como sempre, começou a sorrir pela boca, tenuamente aberta, avisando-me que precisamos de falar; depois os olhos azuis brilharam lembrando as boas notícias do céu, poucos metros depois, virou-se levantando o braço e com a mão me disse: “estamos juntos, a luta continua!”
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Por Arnaldo Meireles
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