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casa das artes
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Abel, o goleador, campeão e capitão

Aproximamo-nos de 19 de Março, dia em que o Sport Clube de Freamunde comemora os seus 88 anos de vida. Ao longo da sua história, em diferentes épocas, o nome Abel esteve presente por vários jogadores nas suas equipas. Mas, para quem o viu jogar, nunca esquecerá o nosso capitão e goleador, o nosso Abel.
Abel da Silva Martins, assim foi baptizado o filho de Joaquim Martins, natural de Eiriz e Maria da Silva, natural do lugar de Freamunde de Cima, onde o Abel também nasceu e cresceu, residindo agora no lugar da Plaina, em Freamunde. O Abel fez a instrução primária com a Professora D. Rita numa pequena escola, já demolida, ao lado das Escolas Amarelas, no piso superior onde em tempos também foi a Junta de Freguesia e mais tarde a sala de ensaio da Banda de Freamunde. A escola nunca foi uma paixão para o Abel, a sua paixão era outra.
– Se apanhasse uma bola esquecia-me de ir à escola e depois apanhava porrada, claro, faltava muito, mas era um bom aluno, não perdi ano nenhum. Primeiro jogávamos no ringue em frente ao coreto e depois quando havia mais pessoal íamos jogar à bola para a feira, debaixo das árvores. Era tudo gente que não ía à escola, que ficava pelo caminho. Naquele tempo havia a cantina na Praça onde davam uma tigela de sopa para aqueles que mais necessitavam, mas eu não tinha direito. Houve uma época em que eles obrigavam a tomar na cantina uma colher de sopa de óleo de fígado de bacalhau. Aquilo era ruim de tomar como um raio.
Andou na catequese até fazer a Comunhão Solene, tendo o seu catequista sido o D. António Taipa, que na altura era seminarista, a quem Abel também se confessou para o seu casamento, sendo um grande amigo que ficou para toda a vida. Os pais de Abel eram lavradores e ao fim de semana eram doceiros. As suas irmãs, mais velhas, não chegaram a ir para a escola, eram necessárias para o trabalho em casa. Aos dez anos, logo que terminou a escola Abel foi trabalhar como torneiro para a fábrica de material escolar do José Leal, em Freamunde. Depois ainda trabalhou em Paços e Rebordosa antes de ir para a tropa. Da fábrica do José Leal recorda um episódio peculiar.
– Da minha geração da escola fomos para lá três ou quatro. Havia um cântaro de barro e era à vez ir buscar água à jóia. Uma vez eu trazia o cântaro ao ombro cheio de uvas. O José Leal vê-me e diz-me:
– Óh rapaz, deita aqui uma pinga de água – solta um sorrido rasgado.
– Eu viro o cântaro e era só uvas. Ele ficou um bocado chateado comigo, mas depois passou.
No regresso do Serviço Militar Obrigatório, onde esteve durante 36 meses, havia falta de trabalho para torneiros de madeira e começa a trabalhar por conta própria a fazer cascos para estofos, atividade que desenvolveu até se reformar. O primeiro quartel é em Espinho, a seguir vai para Chaves e depois vem para o R. I. 6 na Senhora da Hora, no Porto. O medo de ir para a guerra do Ultramar esteve sempre presente, onde infelizmente faleceu o seu irmão Abílio Martins, em Angola. A lei é alterada e quem tivesse perdido um irmão na guerra já não iria para o Ultramar. O Abel apresentou um requerimento e ficou livre de ir para a guerra. Um enorme alívio para si e para a sua família.
Família que também iria começar a construir ao casar com a Maria do Céu, filha do Zé Rangel.
Primeiro nasceram a Sandra e o Jorge, que são gémeos, depois nasceu a Isabel e a Catarina. Três filhas e um filho que lhes deram cinco netos: a mais velha, a Beatriz já tem 18 anos, o Gonçalo com 15 anos, o Luís tem 14 anos, o Rodrigo tem 12 anos e a mais novinha, a Matilde, tem 6 anos.
O futebol é uma grande marca na vida de Abel Martins e essa ligação começou bem cedo.
– Eu tinha  13  e houve um torneio em que os jogadores mais velhos do Freamunde, o Ivo, o Barbosa, o Humberto e outros fizeram cada uma equipa com 5 jogadores cada, tipo futebol de salão. Dividíamos o campo e jogávamos. Eu pertencia à equipa do Humberto, era de Leigal. Eu era guarda-redes mas gostava mais de jogar na frente. No primeiro jogo que fizemos perdemos por 1-0. No jogo seguinte eu fui falar com o Humberto e disse-lhe:
– Eu não quero mais ir para a baliza, eles não marcam golos.
No jogo seguinte ele pôs-me a jogar na frente em marquei logo 3 golos e comecei aí, mas era a brincar, o campeonato só havia para os juniores, a partir dos 16 anos. Aos 16 anos começo a jogar na equipa de juniores, que era uma equipa terrível, treinada pelo Zeca Mirra. 
Em cima, da esquerda para a direita: Zeca Mirra, Zeca “Pequito”, Agostinho “Rita”, Domingos Faria, Henrique Costa, Jacinto Mendes, Jaime, Peixoto, Cunha e Júlio Regadas
Em baixo, da esquerda para a direita: Fernando, Justino Guerra, Abel, Quim, Chico
– Fomos duas vezes ao Nacional de Juniores, ganhamos aqui 1-0 ao Porto, que já não perdia há 2 anos. No segundo ano fui o melhor marcador no Nacional de Juniores. Quando acabou o campeonato foram 5 ou 6 jogadores para a equipa de seniores. Claro, quem lá estava não gostou muito, não aceitaram e alguns foram-se mesmo embora. Ficaram dois ou três, o Humberto e o Luís Mirra, que eram os mais moderados. Entramos e um ano depois em 1969-1970 fomos campeões distritais da A. F. Porto.
Em cima, da esquerda para a direita: Miguel, Ribeiro, Domingos Faria, Júlio Guerra, Luís Afonso, Barbosa, Zé Maria Viana, Rola (Treinador), Agostinho “Rita”, Chile, António Alves (Presidente), Zeca “Pequito” (Massagista)
Em baixo, da esquerda para a direita: Augusto Taipa, Daniel Barbosa, Couto, Humberto, Fernando Viana, Ernesto, Abel, Venâncio, Jacinto Mendes, Albino “Malapeiro”. O miúdo da bola é Américo Meireles, de Ferreira.
Abel da Silva Martins, o campeão, o capitão
As tácticas eram diferentes do que são hoje e a equipa jogava com 5 avançados. O Ernesto e o Venâncio eram os jogadores com quem o Abel mais gostava de jogar.
– Eu jogava no meio dos centrais e não me lembro de marcar um golo fora da área. Estava sempre metido lá na frente. Elas apareciam e eu era “pumba”, “pumba”. Eu dava uma média de 15 a 20 golos. Depois perdemos o Venâncio, por problemas, o Ernesto foi lá para fora para a guerra, a coisa começou a piorar e eu comecei a desanimar e disse à Direção que não queria jogar mais, tinha 30 anos, se eles me quisessem fazer uma festa de homenagem que fizessem.
A Direção, presidida por António Alves, acaba por concordar e diz-lhe que arranje uma equipa para essa festa de homenagem. Pensando numa equipa que pudesse dar mais umas “croas”, o Abel convida o Futebol Clube de Paços de Ferreira para participar no seu jogo de homenagem, que pensava ser o seu jogo de despedida. Na altura o Futebol Clube de Paços de Ferreira equipava de azul e branco às riscas.
Bilhete da Festa de Homenagem
Abel a cumprimentar os jogadores do Futebol Clube de Paços de Ferreira
Abel a cumprimentar Nani Santos e outros jogadores do Sport Clube de Freamunde
Estava no seu cantinho descansado e o senhor Cardoso, um freamundense que residia na Vila da Aves, insistiu várias para que fosse para lá jogar no C. D. Aves. No Sport Clube de Freamunde não havia ordenados, só uns prémios em caso de vitória e o Abel diz que só aceitaria caso lhe pagassem um ordenado. A proposta do Abel era de receber 15 contos por mês, que naquela altura era muito dinheiro e que pensava que não seria aceite. Chegam a acordo para um salário de 12 contos por mês, numa altura em que o salário mínimo era de 3,6 contos por mês. Para Abel era uma fortuna, ninguém ganhava isso.
– Depois de jogar no Aves ainda vim para cá. O Freamunde desceu e pediram-me para deitar uma mão. Como o treinador era o Rola acabei por aceitar, mas sem ganhar dinheiro nenhum. Eram uns lanches e um prémio de vitória de 50 escudos em casa e 100 escudos fora. As coisas começaram a correr mal, o Rola é despedido e pedem-me para tomar conta a equipa, que ia jogar no domingo ao Oliveira do Douro. Já não ganhávamos há uma série de jogos, já não sei o que disse mas se calhar motivei os jogadores e nós ganhamos por 1-2. Entretanto veio outro treinador que começou a pegar muito comigo e aí eu deixei de jogar. Depois treinei 2 anos a equipa de juniores, mas vi que não era aquilo que me entusiasmava e abandonei. O treinador que mais me marcou e com quem estive mais anos foi o Rola e que até foi Campeão. Mas tive bons treinadores. Também fui treinado pelo Santana, mas quando fomos treinados pelo Osvaldo Cambalacho não subimos à 2.ª Divisão, talvez por termos facilitado. Como jogadores da minha geração o Ernesto e o Venâncio foram os meus ídolos. Mais tarde apareceram o Jorge Regadas e o Sacramento. Dos mais velhos, o Humberto para mim foi o melhor jogador do Freamunde.
Mais tarde o Abel ainda haveria de voltar a jogar no Carvalhal com a camisola da estrelinha ao peito, mas aí era mesmo só por diversão. Era a equipa das Velhas Guardas que participava no Torneio “As árvores morrem de pé”, organizado pela A. F. Porto.
Em cima da esquerda para a direita: António Martins, Ribeiro, Zé Maria, Vitor Lobo, Paco Cunha, Henrique Costa e Jacinto Mendes.
Em baixo da esquerda para a direita: Albino Loreira, Daniel Barbosa, Máximo. Manuel Mendes, Martinho, Alfredo e Abel.
Termina o futebol, o Abel descobre novas paixões e formas de passar o seu tempo. Começa pela caça, gostava dos coelhos e perdizes, indo com a sua matilha de cães todos os fins de semana para Trás-os-Montes. Mais tarde as pernas já não ajudavam e a pesca passa a ser o novo passatempo. Tira a licença de pescador e chega a estar inscrito no Clube de Pesca e Caça de Freamunde. Depois da pesca no rio virou-se para a pesca no mar, indo muitas vezes pescar para S. Jacinto, Aveiro, um lugar muito procurado pelos pescadores.
– Saímos daqui às cinco da manhã para arranjar lugar, o que é muito difícil. Dá muito peixe, muito peixe. Robalo, sargo e faneca é o que sai muito.
Como bom freamundense que se preze, o Abel também fez parte das Sebastianas e presidiu à Comissão de 1983. Umas festas que foram realizadas com o nível que era habitual e que custaram 2 mil contos. Sobraram 50 contos e na altura dava-se sempre ao Padre quando sobrava algum dinheiro, as comissões nunca entregavam dinheiro a outra comissão. Pela negativa as festas ficaram marcadas por haver um festeiro que desviava o dinheiro do peditório, acabando por ser despedido, mas também há boas recordações.
– Nós fizemos coisas maravilhosas, vários espectáculos. Na Páscoa veio cá o Carlos Paião. A gente punha uma sarapelheira em volta da Praça para as pessoas não verem, pagarem para entrar e irem também comer um caldo verde e uma sardinha. Lembro-me também de nas festas um sardinheiro nos ter enchido de sardinhas oferecidas, aquilo não foi tudo vendido e eu levei muitas para o Rio Madões.
A música foi a última paixão a entrar na vida do Abel, mais ou menos quando deixou a caça.
– Tenho os fins de semana sempre ocupados com a caça, e agora o que é que eu vou fazer? Eu gosto tanto de acordeão e concertina, tenho que ir aprender. E lá fui a uma escola a Paredes inscrever-me e comprar um acordeão.
Desiludido com os métodos de ensino abandona esta escola e vai à procura de novo professor em Nevogilde. Mas ele era muito novo e queria era “marias”. Vai tendo outros professores mas acaba por ir aprendendo por si próprio e com a ajuda de quem sabe mais. Entretanto foi tocar para a Tuna da Associação Musical de Freamunde. De tanto se esforçar, acabou por aprender alguma coisa de música e hoje já toca alguma coisa por pauta na nossa tuna, o que lhe facilita, já não tem que decorar as músicas. Comprou mais tarde um acordeão novo, a quatro vozes, e é assim que agora se entretém.
Ao falarmos de freamundenses que mais admirou vem à baila o Sr. Mendes, da padaria.
– Foi sempre meu amigo, um amigo do futebol. Ele no futebol era cinco estrelas. Dizia para eu trazer mais quatro cinco, passávamos por casa dele, enchíamos uma saca de trigo e íamos para a adega dele à beira do rio beber uma pinga e comer trigo. Era um grande freamundense. Eu estive doente dos pulmões, ele chamou-me a casa dele e ajudou-me. Quando eu já podia trabalhar ele arranjou-me um emprego na Câmara sem me dizer nada antes e eu não quis.
– Vais para a Câmara e tens lá lugar como cobrador da luz – diz-lhe o senhor Mendes
– Óh, senhor Mendes, eu gosto tanto daquilo que faço – responde-lhe o Abel.
– E gostava, cheguei a ter cinco tornos a trabalhar.
Quando questionado sobre o que gostava de ver ser feito em Freamunde, o Abel diz-me:
– Em Freamunde tem sido feita muita coisa bonita, a Igreja está impecável e gosto da frente que está a ser feita. Eu acho que o nosso centro vai mudar para melhor, mas há pessoas que criticam. Mas não tenho dúvidas, Freamunde é uma terra de músicos, de cultura e precisa de um grande auditório. Eu acho que mais tarde ou mais cedo Freamunde vai ter, já não será no meu tempo com certeza. Adorava ver, adorava.
Quem sabe, o Abel que tantas alegrias nos deu com os golos que marcou ao serviço do  Sport Clube de Freamunde, um dia ainda nos dará alegrias a tocar com o seu acordeão na Tuna da Associação Musical de Freamunde num grande auditório na nossa terra. Será motivo para todos berrarmos em uníssono e com intensidade ao golo que todos desejamos, condizente com o título de “campeões” que trazemos ao peito no presente e na nossa história.
Texto: Pedro Ribeiro